sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Elizabeth Bishop (1911-1979)


O LADRÃO DA BABILÔNIA

Nas verdes encostas do Rio
Cresce uma mancha terrível:
Os pobres que vêm para o Rio
E não podem voltar para casa.

Nas montanhas um milhão de pessoas,
Um milhão de pássaros fazem seus ninhos,
Como uma confusa migração
Que chega até ali e pousa,

Construindo seus ninhos, ou casas,
Que tiram do nada, ou do ar.
Pensamos que um vento os sopraria,
De tal forma que estão ali pousados.

Mas se agarram e se espalham como líquens,
E não param de chegar.
Há uma favela chamada Pinto,
E outra chamada Catacumba;

Há a favela do Querosene,
E a favela do Esqueleto,
E a favela do Pasmado,
E a favela da Babilônia.

Micuçú era ladrão e assassino,
Um inimigo da sociedade.
Ele fugira três vezes
Da pior penitenciária.

Não sabem quantos ele matou
(embora digam que nunca tenha estuprado),
E feriu dois policiais
Da última vez que escapou.

Disseram: “Ele vai ver a tia,
Que o criou como um filho.
Ela tem um barzinho
No alto do morro da Babilônia.

Ele foi direto ver a tia,
E bebeu a última cerveja.
Disse a ela: “Os polícia tão vindo,
E eu tenho que sumir”.

“Me deram noventa anos de cana.
Quem quer viver tanto tempo?
Prefiro noventa horas
No morro da Babilônia.

“Não diga a ninguém que me viu.
Vou correr até quando puder.
Tu foi boa pra mim e eu te amo,
Mas estou condenado”.

Ao sair, encontrou uma mulata
Carregando uma lata d’água na cabeça.
“Se disser que me viu, filha,
Tu tá morta”.

Há cavernas lá em cima, e esconderijos,
E um antigo forte, em ruínas.
Costumavam vigiar os franceses
Do morro da Babilônia.

Embaixo estava o mar.
No horizonte tocava o céu,
Liso como um muro, e por ele
Passavam navios de carga,

Ou seguiam em frente,
Até parecerem mosquitos,
E então caíam para o outro lado e sumiam;
E ele sabia que iria morrer.

Ele podia ouvir os bodes fazendo béee-béee,
Ele podia ouvir os bebês chorando;
As pipas voavam bem lá no alto;
E ele sabia que iria morrer.

Um urubu passou tão perto dele
Que pôde ver seu pescoço pelado.
Ele agitou os braços e gritou:
“Ainda não, meu filho, ainda não!”

Um helicóptero do Exército
Sobrevoava em círculos para todo lado.
Ele pôde ver dois homens dentro dele,
Mas não o viram.

Havia policiais por toda parte,
Dos dois lados do morro,
E na linha do horizonte
Havia uma fileira deles, parados e pequenos.

As crianças espiavam pelas janelas,
E os homens no bar xingavam,
E cuspiam um pouco de cachaça
Nos buracos do chão.

Mas os policiais estavam nervosos,
Mesmo armados até os dentes,
E um deles, em pânico,
Atirou no oficial em comando.

Ele o atingiu em três lugares;
Os outros tiros se perderam.
O policial ficou histérico
E chorava como uma criança.

O moribundo disse: “Acabem
Com o que viemos fazer aqui”.
Encomendou sua alma a Deus
E seus filhos ao Governador.

Correram e trouxeram um padre,
E ele morreu acreditando que ia para o Céu
– um homem de Pernambuco,
O mais novo de onze filhos.

Queriam parar a busca,
Mas o Exército disse: “Não, vão em frente”,
Então os policiais se espalharam de novo
Subindo o morro da Babilônia.

Os ricos nos apartamentos
Observavam com binóculos
Enquanto durasse o dia.
E a noite toda, sob as estrelas,

Micuçú se escondeu no capim,
Ou sentou-se debaixo de um arbusto,
Ouvindo os barulhos, e olhando
O farol em alto-mar.

E o farol olhava-o de volta,
Até finalmente amanhecer.
Estava molhado de orvalho e faminto
No morro da Babilônia.

O sol amarelo brilhava horrível
Como um ovo cru num prato –
Lambido pelo mar. Ele o amaldiçoou,
Por saber que isso selaria sua sorte.

Viu as longas praias brancas
E todos indo nadar,
Com toalhas e guarda-sóis,
Mas os policiais estavam em seu encalço.

Bem lá embaixo, as pessoas
Eram pontinhos coloridos,
E as cabeças dos nadadores
Pareciam cocos na água.

Ele ouviu o vendedor de amendoim
Apitar peep-peep seu apito,
E o vendedor de guarda-chuvas
Tocar sua matraca de vigia.

Mulheres com cestas de compras
Ficavam de pé nas esquinas conversando,
Depois seguiam para o mercado,
Olhando para cima enquanto andavam.

Os ricos com seus binóculos
Haviam voltado, e muitos
Estavam nos telhados,
Entre antenas de TV.

Era cedo, oito ou oito e meia.
Ele viu um policial subindo,
Olhando direto para ele. Atirou,
E errou pela última vez.

Ele pôde ouvir o policial arfando,
Embora não tenha se aproximado.
Micuçú se escondeu,
Mas foi atingido, por trás da orelha.

Ele ouviu os bebês chorando
Longe, longe dentro da cabeça,
E os cães latindo e latindo.
Então Micuçú morreu.

Ele tinha um Taurus,
E apenas a roupa do corpo,
Dois contos nos bolsos,
No morro da Babilônia.

A polícia e a população
Soltaram um suspiro de alívio,
Mas por trás do balcão sua tia
Secou os olhos de tristeza.

“Sempre fomos respeitados.
Minha loja é honesta e limpa.
Eu o amava, mas desde criança
Micuçú era ruim.

“Sempre fomos respeitados.
A irmã tem um emprego.
Nós duas lhe dávamos dinheiro.
Por que ele tinha que roubar?

“Eu o criei para ser honesto,
Mesmo aqui, na favela da Babilônia”.
Os fregueses beberam de novo,
Com ar sério e sombrio.

Mas um deles disse para o outro,
Ao sair porta afora:
“Ele era um ladrão de nada,
Foi preso seis vezes – ou mais”.

Esta manhã os policiais
Retornaram ao morro da Babilônia;
Seus revólveres e capacetes
Brilhando sob a chuva.

Micuçú já está enterrado.
Estão caçando outros dois,
Mas dizem que não são tão perigosos
Quanto o pobre Micuçú.

Nas verdes encostas do Rio
Cresce uma mancha terrível:
Os pobres que vêm para o Rio
E não podem voltar para casa.

Há a favela do Querosene,
E a favela do Esqueleto,
E a favela do Pasmado,
E a favela da Babilônia.


Elizabeth Bishop, The Complete Poems (1927-1979)
Nova York, Farrar, Straus & Giroux, 1983. p. 112-118.

Nota: Em inglês, ela chama a favela do Pinto e a do Esqueleto de "morro" (hill), quando não são. Por isso preferi chamar todas de favela, mesmo que ficassem num morro.
Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta




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